o próximo a aparecer aqui será meu...
Aí pelas Três da Tarde
(para José Carlos Abbate)
Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom
senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do
mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem
moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um
tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta,
componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos
quanto os tais escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do
dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde,
com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa
ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era
conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando
crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não
exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das
meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a
importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até
em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando
ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de
comportamento. Feito um banhista incerto, assume em seguida no trampolim
do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto,
silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de
grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante
com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a
mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado,
circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre
com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois,
com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre
plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá
ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um
impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se
sentir embalado pelo mundo.
Texto extraído do livro “Menina a caminho”, SP: Companhia das Letras, 1997. pág.71.
Publicado em http://revistamacondo.wordpress.com/2012/06/29/conto-ai-pelas-tres-da-tarde-raduan-nassar/
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